“Veio, de menino de oiro pela mão, acordar a madrugada. E fez mais, às vezes, uma só canção do que muita panfletada” .
Nos depoimentos que frequentemente são produzidos acerca do Zeca Afonso acaba sempre por haver uma tendência para destacar as riquezas, sem dúvida apaixonantes e essenciais, da sua imensa personalidade. Tal facto dever-se-á por certo à clara transparência da sua prática de vida e à naturalidade com que punha, no mais quotidiano gesto, todo o sentido dos valores que respirava – numa palavra, o exemplo que foi todo o seu percurso como cidadão, companheiro e artista.
Num país (e numa época) em que, por força da opressão, a criação – frágil e livre – se viu obrigada a alistar-se nos exércitos da utilidade social, é de esperar que se repare mais na luminosidade do exemplo do que na genialidade intrínseca da obra.
Mas José Afonso – a par de Ferré, Brel, Yupanqui, Dylan ou Chico Buarque – é um dos poucos autores/intérpretes que, no nosso século, provaram que a forma musical “canção popular” ultrapassa muito o estatuto de arte menor e atinge os mais altos níveis de qualidade estética poético-musical.
Diga-se, em abono da verdade, que o próprio Zeca Afonso nunca apreciou muito que se puxasse para este campo o debate sobre a sua obra. Sempre cuidando (e com que mestria!) os aspectos formais as suas canções, ele sobrelevava sistematicamente a sua potencial utilidade para as pequenas e grandes causas da Humanidade. Sentia-se mais à vontade na pele de testemunha activa do seu tempo do que na de um poeta prospector de eternidades. Certamente por saber, como sempre souberam os grandes, que os “aspectos formais” não são assim tão meramente formais, e que é sempre do solitário combate contra a matéria que acaba por nascer o sentido da obra criada.
O gesto criativo de José Afonso era, à primeira vista, espontâneo, simples, quase primitivo e orgânico. A balada coimbrã – matriz de origem, ela própria radicada no cancioneiro tradicional beirão e açoriano – foi o veículo formal de um poderoso assumir das suas raízes poético-musicais. Anos mais tarde, a vivência africana provoca-lhe uma verdadeira explosão de formas melódicas, rítmicas e tímbricas, e – talvez mais que tudo – da função musical da palavra cantada.
O chão desta fonte de música era a sua profunda cultura humanística, assimilada e vivida. Praticar a liberdade dá asas à criação, eis o que a vida e a obra do Zeca nos ensinam.
A obra de José Afonso, no seu todo, é um património fundamental da cultura portuguesa deste século. Fonte inesgotável de propostas, de caminhos possíveis, limiar de contacto directo com as sombras da nossa identidade de povo antigo e perdido. E, tal como a todo o nosso património, essa obra vive no perigo permanente de lhe acontecer o que vi, não há ainda muito tempo, numa praça de Lisboa: uma belíssima vivenda pombalina disfarçada de loja de “hamburgers”.
Começam a abundar, por aí, deploráveis sinais de um aproveitamento bastardo e oportunista do seu génio.
Que não se cansem de nascer as fontes onde o Zeca foi beber.
– José Mário Branco
NOTA: O título deste post foi alterado por sugestão de Paulo Esperança, segundo as indicações deixadas no comentário abaixo.